Uberaba tem mais centros kardecistas do que igrejas católicas. Eles atraem multidões de visitantes em busca da comunicação com entes queridos que estão no além
Alexandre Salvador, de Uberaba
Fotos Manoel Marques
Turismo das almas: O médium Celso de Almeida Afonso (à esq.) psicografa uma mensagem por meio de garranchos (abaixo). Ele é um dos sucessores de Chico Xavier, cuja imagem ilustra um outdoor (à dir.) que saúda os visitantes na entrada da cidade
O Brasil é a nação com o maior número de seguidores do espiritismo, a doutrina criada no século XIX por Allan Kardec, pseudônimo do francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, e cuja característica mais divulgada é a possibilidade de comunicação direta entre vivos e mortos. O país tem 2,2 milhões de espíritas declarados, segundo o último censo do IBGE, e outros 18 milhões de simpatizantes, de acordo com a Federação Espírita Brasileira (FEB). Nesse contexto, Uberaba, no interior de Minas Gerais, localizada a 480 quilômetros de Belo Horizonte, pode ser considerada a capital mundial do espiritismo. A cidade, com 290 000 habitantes, conta com mais de 100 centros kardecistas, contra apenas 54 igrejas católicas. A razão pela qual o espiritismo criou raízes tão profundas em Uberaba é o legado do médium Francisco de Paula Cândido Xavier. Chico Xavier se mudou para Uberaba em 1959 e viveu na cidade até morrer, em junho de 2002. Antes de ele se instalar ali, o número de centros kardecistas não chegava a dez.
Ao longo de sua doutrinação, Chico Xavier "escreveu" 412 livros ditados, segundo ele, por espíritos do além. No jargão espírita, são obras "psicografadas". Os primeiros deles eram de poesia, assinados, entre outros, pelo poeta parnasiano Olavo Bilac e pelo naturalista Augusto dos Anjos. Depois, suas obras passaram a divulgar a doutrina kardecista. Chico Xavier afirmava receber vários espíritos. Um dos que mais impressionavam suas plateias era o do médico cearense Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti, que viveu no Rio de Janeiro no século XIX. Dizendo incorporá-lo, Chico receitava medicamentos – sempre fitoterápicos, para não ser enquadrado em crime de charlatanismo – aos fiéis que o procuravam. Juntos, os volumes escritos pelo médium venderam até hoje mais de 30 milhões de cópias. Sua biografia, As Vidas de Chico Xavier, foi transformada em filme. Um novo longa será lançado em setembro e retratará a história do livro Nosso Lar – seu maior best-seller, com 2 milhões de cópias vendidas. Mesmo após oito anos de sua morte, a influência de Chico Xavier em Uberaba ainda é fortíssima e desperta a curiosidade de milhares de turistas espirituais que visitam a cidade.
Enquanto o médium era vivo, as caravanas chegavam quase que diariamente à cidade. "Não menos de 1 000 pessoas, todas as sextas e sábados", diz o filho adotivo de Chico, Eurípedes Higino dos Reis, que é dentista, mas não exerce a profissão. Hoje, o movimento de fiéis é menor. Mesmo assim, Uberaba é referência para aqueles que buscam pelos discípulos de Chico Xavier para estabelecer uma ponte com a vida após a morte. Nos fins de semana, ônibus de visitantes circulam pela cidade à procura das sessões públicas de psicografia. Quem vai aos centros espíritas quase sempre passou por grande trauma envolvendo a morte. Perdeu de forma trágica ou inesperada um filho, os pais ou um irmão. No ritual, o médium se comunica com esses parentes falecidos, recebe deles uma mensagem e a transcreve no papel.
Os procedimentos são bem parecidos em todos os centros. Os interessados em receber mensagens do plano espiritual devem preencher uma ficha com dados básicos (nome, parentesco, data de nascimento e de morte) da pessoa com quem desejam se comunicar. Em seguida, o médium se fecha numa sala, onde analisa as fichas e tenta estabelecer contato com os espíritos dos mortos. Depois dessa seleção, senta-se em frente à mesa, concentra-se e começa a psicografar. Em média, de cinco a seis cartas são escritas por sessão. Enquanto ele preenche as páginas em branco – trabalho que demora uma hora e meia, para todas as mensagens –, outros membros do centro discursam aos presentes sobre assuntos da fé e da espiritualidade, com base em passagens dos livros kardecistas. Ao final da psicografia, o médium faz a leitura pública das mensagens. Como os garranchos são incompreensíveis, a leitura é gravada.
O momento da leitura das cartas é, de longe, o mais emocionante da sessão. Em quase todas as mensagens, os mortos se referem aos parentes vivos pelo nome. Em algumas, é descrita a causa ou a situação em que o "remetente" morreu ou fornecida alguma informação que, supostamente, seria de conhecimento apenas dos parentes. Esse é um ponto controverso. Nas sessões testemunhadas pela reportagem de VEJA, o médium fez previamente uma pequena entrevista com o interessado em receber a carta. "É um encontro muito rápido, não mais de um ou dois minutos. É um elemento de sintonia", assegura o médium Carlos Antônio Baccelli, do Lar Espírita Pedro e Paulo, um dos mais visitados pelos turistas. Baccelli afirma que Chico também tinha esse tipo de conversa preliminar.
Fé e assistencialismo
O médium Carlos Baccelli no Lar Espírita Pedro e Paulo, que serve de asilo a idosos: mais de 100 livros publicados
Carlos Antônio Baccelli é considerado pelos fiéis que o procuram um dos principais sucessores de Chico Xavier, inclusive nas atividades assistenciais. Ele administra um asilo com trinta idosos abandonados pela família. Baccelli tem mais de 100 livros publicados. Segundo o médium, alguns foram escritos por espíritos e psicografados por ele. Em outros, ele se assume como autor. Mais do que fornecer testemunhos verossímeis de espíritos que se comunicam do além, as cartas têm a função de confortar os parentes dos mortos. "É preciso que as pessoas leiam a mensagem com carinho e não tentem buscar aquilo que elas desejam saber, mas sim ouvir o que a pessoa que está do outro lado pode dizer", comenta o paulista João Roberto Rui dos Santos, que, logo na primeira visita a Uberaba, recebeu uma carta do filho morto em um acidente automobilístico aos 18 anos. Santos já havia perdido outro filho, com apenas 3 meses de idade. Ele admite que forneceu informações ao médium Celso de Almeida Afonso, do Centro Espírita Aurélio Agostinho, mas não tem dúvida de que é seu filho que está se comunicando. "Antes mesmo de dizer qualquer coisa, ele falou que meu avô Luiz está cuidando do meu filho. Eu não havia revelado esse detalhe a ninguém", conta Santos.
Mensagens que confortam
João Roberto Rui dos Santos, a esposa, Carmen, e a filha Marina no Centro Aurélio
Agostinho(à esq): emoção de receber uma carta do filho morto aos 18 anos. O ritual espírita inclui passes de energização (à dir.)
O Grupo Espírita da Prece, centro fundado por Chico Xavier em 1975 e onde o médium trabalhou até o fim da vida, não realiza mais sessões de psicografia. A decisão de encerrar a comunicação escrita com o além foi de Eurípedes Higino, que agora administra o centro espírita e as obras assistenciais criadas por seu pai adotivo. "Ele me transmitiu essa missão. Ele me chamava de ‘último dos moicanos’", diz Eurípedes. É ele quem detém os direitos sobre a memória e o nome de Chico Xavier. A exceção são as obras literárias: o médium cedeu sua parte nos lucros às editoras que publicam seus livros. Às quintas-feiras, a Casa Assistencial Chico Xavier oferece um jantar a mais de 1 000 pessoas, além de doar pão, leite, enxoval para crianças e fornecer orientação médica e odontológica gratuita.
Para as obras assistenciais, Eurípedes conta essencialmente com donativos, a maior parte vinda de um grande empresário do ramo de borracha e plástico do Rio Grande do Sul. Vale-se também da renda de uma pequena livraria montada em frente à casa onde morava o médium. O principal produto à venda são suvenires com a imagem de Chico. Eurípedes atendeu a outro pedido do médium: que abrisse as portas da casa onde morava e a transformasse em um museu. O gesto quase causou o tombamento do único imóvel herdado pelo filho adotivo. Por isso, Eurípedes fez questão de pintar uma mensagem bem terrena na fachada da casa: Casa de Memórias e Saudade Chico Xavier – imóvel de minha propriedade.
O herdeiro e o mentor
O filho adotivo de Chico Xavier, Eurípedes Higino dos Reis, na casa em que viveu o médium: controvérsia ao desmentir que o espírito do pai já tenha se manifestado. O médico cearense do século XIX Bezerra de Menezes (ao lado) receitava remédios por intermédio de Chico.
Eurípedes é uma figura controversa em Uberaba. Nos últimos anos de vida de seu pai, atuava como uma espécie de empresário do médium. Controlava o acesso a ele e escolhia quem podia vê-lo. Depois da morte de Chico, envolveu-se em polêmicas a respeito da autoria de mensagens e até livros atribuídos ao espírito de Chico Xavier. Essas mensagens foram recebidas por vários médiuns do país, inclusive Celso de Almeida e Carlos Baccelli, ambos de Uberaba. Eurípedes nega que seu pai tenha se comunicado com o mundo dos vivos após a morte. "Há mais de 200 mensagens atribuídas a ele, todas falsas", diz.
O que faz o filho adotivo de Chico ter tanta certeza de que as mensagens são apócrifas é o pacto que celebrou com o pai antes de ele morrer. O médium determinou que qualquer mensagem que enviasse ao mundo terreno conteria determinado código. O médico particular de Chico, que coincidentemente tem o mesmo nome do filho, Eurípedes Tahan, e uma amiga, Kátia Maria, são testemunhas desse pacto. Como nenhuma das mensagens carrega o tal código, o filho de Chico as rechaça. A questão do código é posta em dúvida por muitos seguidores do espiritismo. Segundo eles, citando os escritos de Allan Kardec, espíritos superiores, como seria o caso de Chico Xavier, não emitem sinais em códigos. O autor francês, na obra O Livro dos Médiuns, diz que eles se fazem reconhecer apenas pela superioridade de suas ideias. A principal atividade econômica de Uberaba é a pecuária. A cidade abriga uma exposição permanente de gado, a Expozebu. Fora isso, é pacata e não apresenta grandes atrativos turísticos. Por isso mesmo, a prefeitura e o comércio local incentivam o espiritismo. Out-doors com a imagem de Chico Xavier saúdam os visitantes que chegam em busca de conforto espiritual por meio do contato com o além. Para esses forasteiros, Uberaba é a cidade dos espíritos.
FONTE: Revista Veja, Comportamento. Edição 2170 / 13 de junho de 2010.